Teletrabalho em Bibliotecas, é possível?


No já longínquo ano de 2002 apresentei/defendi na Universidade do Porto-FEUP uma dissertação de mestrado (pré-Bolonha) sobre Teletrabalho e Bibliotecas, estando nessa altura longe de imaginar que eu próprio viria, quase duas décadas depois, a experienciar no domicílio o trabalho remoto nesta área. De então para cá, a acentuada evolução nas vertentes juslaboral e tecnologias da informação e comunicação foram significativas. Refiram-se, a título de meros exemplos, a crescente utilização de redes sociais, de aplicações e plataformas informáticas colaborativas, o desenvolvimento e generalização de redes de comunicações (com especial realce para as VPN´s) e a publicação de legislação (alguma muito recente) alusiva ao teletrabalho.

Não obstante, a adesão em Portugal a formas remotas de trabalho tem sido, sobretudo por razões de cultura organizacional, residual; dados oficiais de 2018 revelam que somente 0,02% dos trabalhadores por conta de outrem (incluindo aqui a Administração Pública) estavam abrangidos por “contratos de prestação subordinada de teletrabalho”.

A conjuntura contingencial que atualmente vivemos devido à pandemia COVID-19 tem, por força das circunstâncias e do isolamento social, fomentado exponencialmente a adoção de práticas de teletrabalho, total e/ou parcial, em muitas profissões e atividades. As bibliotecas (e outras unidades documentais), enquanto organizações dinâmicas da fileira da informação e do conhecimento, procuram através dos seus profissionais responder aos problemas e desafios que esta forma de organizar o trabalho remotamente acarreta não descurando, de igual modo, os serviços aos seus utilizadores e à comunidade onde se inserem.

Evidentemente, nem todas as atividades e tarefas usualmente desenvolvidas nas bibliotecas são suscetíveis de ’teletrabalhabilidade’, contudo muitas delas são exequíveis de serem efetuadas, ainda que parcialmente, de forma remota. É possível identificar e agregar um conjunto alargado de tarefas, rotinas e atividades, tradicionalmente desenvolvidas em bibliotecas e unidades documentais, que podemos tipicamente enquadrar (sem preocupações de exaustividade) nos seguintes eixos meramente operativos:

Administração e gestão: planeamento, análise documental, investigação bibliográfica, aquisições, revisão da base de utilizadores/leitores, elaboração de relatórios, estatísticas, preparação de propostas, pareceres e dossiers, coordenação e gestão de projetos, elaboração de trabalhos diversos a partir de dados existentes, gestão de informação…;
Tratamento técnico documental / processamento bibliográfico: registo, adição de cotas, catalogação, classificação e indexação em linha, revisão de autoridades, normalização de registos bibliográficos, elaboração de índices, conversão retrospetiva de catálogos…;
Informática documental: introdução/digitação de dados, verificação, deteção e controlo de erros e validação de registos, manutenção e gestão de bases de dados/sistemas integrados de gestão de bibliotecas, seleção, extração e importação/exportação de registos, desenvolvimento aplicacional…;
Referência e apoio ao utilizador: pesquisa documental, mediação de informação, difusão seletiva de informação, fornecimento de documentos por via eletrónica, formação à distância (profissional e/ou aos utilizadores), produção de informação de valor acrescentado a partir de dados já processados, digitalização de conteúdos, atividades em linha de referência e apoio aos leitores (videoconferência, chats,…), atividades de divulgação e de extensão cultural (exposições e mostras, serviços de apoio ao ensino, webdesign, edições digitalizadas, biblioteca digital,…).

Naturalmente, as atividades a desenvolver em regime de teletrabalho deverão ter em consideração a tipologia das bibliotecas (nacional, municipal, universitária, especializada, pública, privada, itinerante,…), o público alvo e/ou a comunidade que servem, as características dos fundos e coleções (maior ou menor vertente patrimonial, livre acesso, empréstimo domiciliário,…), a cultura organizacional da instituição, a formação e capacitação dos recursos humanos existentes e a infraestrutura tecnológica disponível. Ainda assim, assomam inevitavelmente alguns constrangimentos que poderão e deverão ser mitigados. Presentemente, com imaginação e engenho; num futuro próximo, com indispensável planeamento e organização.

Terminaria o presente e sucinto contributo-testemunho enfatizando algumas atividades de teletrabalho, associadas à criação, processamento e difusão de informação bibliográfica, nas quais estou profissionalmente envolvido. Na área do processamento bibliográfico e documental – particularmente no domínio do livro antigo – muito tenho beneficiado da disponibilidade e do acesso, livre e universal, a catálogos públicos em linha de referência, a bibliotecas digitais e a repositórios de dados abertos, em Portugal (ex.: OpenData BNPortugal) e internacionalmente.
Estes e outros recursos informacionais facilmente acessíveis através da Internet possibilitam, entre outras valências, a reutilização de dados para conversão retrospetiva de catálogos e, mesmo, catalogação remota via VPN com imediata disponibilização pública da descrição catalográfica no webOPAC das bibliotecas. Ulteriormente e in loco os dados processados serão cotejados com as respetivas espécies bibliográficas corrigindo-se, então, o que se revelar necessário e aditando-se os dados específicos relativos ao exemplar in manu.

Findo com uma palavra de encorajamento aos profissionais da informação e com uma saudação (também extensiva aos seus familiares) apropriada nos tempos que correm.
Saúde!
Júlio Costa, "Teletrabalho em Bibliotecas? Sim, é possível...", in BAD, 25.03.2020