"Há
anos que Vladimir Safatle vem estudando como o “medo se tornou elemento da
gestão social”. A comunicação política, que inflige o medo e acena com a
esperança, passou a ser o modo de desenhar o espaço social e ratificar a
precarização em todas as dimensões da vida humana, gerando a fácil submissão e
controlo. A população é sujeita a uma intimidação, nem sempre subtil, que pode
explicar a precipitação de contornos imorais em favor de regimes de aspiração
autoritária e reafirmação de um capitalismo ou socialismo prepotentes.
Quando
hoje explanamos sobre o medo estamos imediatamente a implicar a mentira, essa
outra realidade que se demite de fazer prova, vive de criar o que não é
verdadeiro e de desmentir o verdadeiro de modo impune. A mentira não é, por
isso, simples. Ela é uma artimanha complexa, amadurecida, que tanto terá seu
valor na utilização mais sofisticada (como podemos verificar na conspiração de
Steve Bannon ou do algoritmo do Facebook, que prefere a discussão promotora das
discórdias) ou na sua utilização linear, simplória e grotesca, como quando
Maduro diz o que quer que seja, Trump diz o que quer que seja ou Bolsonaro diz
o que quer que seja.
Neste
estado do Mundo, já todos nos apercebemos como lidamos essencialmente com
hipóteses, o que transforma a aceleração que já se vivia numa obsolescência que
muda o paradigma humano sob o qual vivíamos. Os cidadãos de hoje acreditam em
algo em que aceitam deixar de acreditar no instante seguinte. Já não há
demasiada ansiedade nisso. Somos abertos a todos os paradoxos e assumimos o
descompromisso. Confrontados com a mentira e desmentidos constantes, não haver
verdade é a nova normalidade. Somos sobretudo uma sociedade de emoções e todas
as emoções prestam serviço à verdade do instante. As emoções não se comprometem
senão com o instante. Exatamente como ninguém poder ser culpado por se ter
desapaixonado ou perdido a convicção de que algo ou alguém é belo.
Agora,
diante da emergência médica imposta, não é útil escrutinar as teorias da
conspiração que propõem as mais assustadoras causas para a Covid-19. Além do
fortalecimento do serviço de saúde público, universal, democrático, gratuito,
importa começar a prestar atenção à necro-política, essa deturpação absoluta,
golpista, de foro criminoso, que vampiriza a miséria para justificar todas as
atrocidades antidemocráticas, preterindo as leis fundamentais sem outro
propósito que não o de usurpar o poder e instrumentalizar a finança. A Covid-19
é uma ameaça a tudo quanto se conquistou.
Mal
gerido o tempo de a vencermos poderemos acordar num Mundo que não será somente
empobrecido, mas também embrutecido, por imponderada fúria ou frustração (coisa
que já vinha acontecendo no Mundo inteiro) entregue às mãos de novos ditadores.
Estou
trancado em casa cuidando da minha mãe, com oitenta anos feitos em janeiro
passado.Assustada com os noticiários, bem antes de qualquer apelo ou medida do
Governo, veio dizer-me que sabia não superar este perigo. Eu quis argumentar
com o autêntico muro que já erguia em seu redor, mas não permitiu que
concluísse. Pediu: deixa-me morrer sem saber mais nada.
Diante
do medo, o que quer que tenhamos para dizer às pessoas é um compromisso, uma
responsabilidade. E é bom que a esperança de que sejamos capazes se muna da
inteligência bastante para não ser imediatamente imbecil ou até culpada.
Celebro muito que o nosso Governo e o nosso presidente mantenham um discurso
calmo, ainda que os vejamos por vezes atarantados, lentos nas decisões,
desassombrados diante de tão grande medo.
Mas
sei que podemos estar a falar dos últimos democratas. Figuras meninas chegaram
à política portuguesa que escalam como outros vírus nas simpatias dos torpes e
dos muito ignorantes, acenando já a um futuro que uma pandemia e consequente
crise financeira poderão antecipar quase entusiasticamente.
Estarei
aqui nem que como um sonhador a defender a minha mãe, é a minha prioridade
prática, mas tão rápido quanto devíamos ter dotado os hospitais de melhores
condições, devemos também elucidar as consciências. Porque confundir a
hecatombe desta crise com a derrocada da democracia poderá ser, esse sim, o
equívoco que nos reduzirá a todos a pouco mais do que escravizados no mundo
moderno.
É
imperioso que a liderança inequívoca necessária nestes tempos não se confunda
com uma imprestabilidade da Democracia. É imperioso que comecemos a discutir o
medo para que ele se desmistifique. Os discursos do medo, do ódio, do
preconceito, da exclusão, têm de ser atacados e nenhum cidadão pode ser
convencido de que perdeu o direito ao seu país e muito menos o direito à vida.
As tolerâncias democráticas não podem redundar na impunidade perante ataques
constantes às leis fundamentais segundo as quais nos constituímos. Quando já se
elegem presidentes cujos ídolos são comprovados torturadores ao serviço de ditaduras,
quando o mundo democrático ratifica tal gesto, a doença da tolerância está
diagnosticada. Liberdade não é legitimação do grotesco, ou elogio do crime.
Liberdade não é branqueamento do crime e da opressão. Isso é cumplicidade e
opressão. É opressão.
À
espreita deste vírus está outra coisa maior, mais grave. Saibamos, a todo o
momento e mesmo em possível estado de emergência, defender o elementar ouro da
sociedade: a democracia, império contrário da discriminação e da mentira."
Valter
Hugo Mãe, "A covid-19: Mira ao futuro", in Notícias Magazine,
24.03.2020.