Recomeços...com a leitura

Por estes dias a despedida da rainha Isabel II marcou as notícias e os media em todo o planeta. Isabel II teve um papel muito especial na monarquia do Reino Unido e fez do serviço a essa causa um valor de vida muito significativo, que será quase impossível encontrar um exemplo semelhante na ligação e identidade de uma cultura e de um País a uma figura pública. A simpatia por ela manifestada de modo tão significativo é o sinal de uma ligação, onde os valores da memória e da construção de uma identidade assumem um valor de uma relação que assumiu muitas formas.

A rainha Isabel II relacionou-se de muitas formas com a sociedade onde nasceu e cresceu, esse mundo onde o Império Britânico comandava o mundo até aos tempos em que ele se transformou numa Commonwealth. Alguns rituais mantiveram-se, mas existem sempre realidades novas a considerar, algo que a rainha Isabel II fez com grande capacidade.

Há alguns anos atrás, um escritor francês, Alan Bennett escreveu um pequeno e maravilhoso livro que nos revela o valor civilizador que a arte e a cultura, e nela a leitura podem ter no espírito humano. Nele o poder da leitura para desconstruir rotinas e criar mundos de possibilidades novos aparece quase como um conto de fadas,onde a rainha Isabel II quase prefere ser leitora a ser rainha. Um dia, ao procurar os seus cães encontrou a biblioteca itinerante estacionada no palácio de Buckingham, a rainha encontrou um funcionário da sua casa real, Norman que ao aconselhar-lhe um livro mudaria a vida da rainha. 

Alguns excertos sobre esse valor da leitura para mudar o que nos rodeia e o que podemos fazer com as nossas escolhas.

"A Rainha hesitou porque, para dizer a verdade, não tinha a certeza. Nunca se interessara muito pela leitura. Lia é claro, como toda a gente, mas gostar de livros era algo que deixava aos outros. Era um passatempo e fazia parte da natureza do seu cargo não ter passatempos.  Os passatempos implicavam preferências e as preferências tinham de ser evitadas; as preferências excluíam pessoas.  Havia que não cultivar preferências. A sua função era mostrar interesse por, não deixar que ela própria se interessasse. Além disso, ler não era fazer. Era alguém que faz. Por isso olhou a toda a volta a carrinha forrada de livros (...)

Agora que descobrira as delícias da leitura, Sua Majestade tinha muita vontade de as divulgar. Ao encontrar naquele dia Sir Kevin, ele [ao ver a a rainha a ler] disse-lhe:

- Consigo entender - disse ele - a necessidade que Vossa Majestade tem de passar o tempo.
-Passar o tempo? -disse a Rainha. -Os livros não são para passar o tempo. São sobre outras vidas. Outros mundos. Longe de querer que o tempo passe, Sir Kevin, quem nos dera ter mais. Se quiséssemos passar o tempo, íamos à Nova Zelândia.  
Sir Kevin retirou-se magoado. Porque é que, neste momento particular da vida, sentira subitamente atração pelos livros. Donde surgira esse apetite?

Sim, poucas pessoas tinham visto mais mundo do que ela. Quase não havia país que não tivesse visitado. Estando ela própria na tribuna do mundo, porque se entusiasmava agora com livros que, por muito que pudessem ser, não passavam de um reflexo ou versão do mundo? Livros? Ela vira a realidade.

-Eu leio e penso - disse ela a Norman -, porque temos o dever de descobrir como são as pessoas. - O comentário fora tão trivial que Norman não lhe dera muita atenção, pois não sentia esse dever e lia por puro prazer e não para se iluminar ou inspirar, embora soubesse que parte do prazer era inspiração. Mas ali o dever não entrava.  Para alguém com a formação da Rainha, no entanto, o prazer ocupara sempre o segundo lugar em relação ao dever. 

Mas porque é que aquilo se apoderara dela agora? Não discutiu isso com Norman, por sentir que dizia respeito a quem ela era e à posição que ocupava. O apelo da leitura, pensou, vinha da sua indiferença: havia na literatura algo de nobre. Os livros não se importavam com quem os lia, nem se os líamos ou não. Todos os leitores eram iguais, incluindo ela própria. Pensou: a literatura é uma comunidade. (...)

Só agora compreendia o que significava. Os livros não se submetiam. Todos os leitores eram iguais e aquele livro levou-a ao princípio da sua vida. Quando ela era nova, uma das suas maiores emoções foi a noite da Vitória na Europa, em que ela e a irmã se esgueiraram pelos portões, incógnitas, e se misturaram com a multidão. Sentia que havia algo disso na leitura. Era anónima, partilhada, comum. E ela, que levara uma vida à parte, ansiava por isso. Aqui, nestas páginas e entre estas capas, podia seguir incógnita. 

Porém, dúvidas e interrogações eram só o princípio. Uma vez no ritmo normal, deixou de lhe parecer estranho o facto de querer ler, e os livros, aos quais se afeiçoara tão cautelosamente, passaram pouco  apouco a ser o seu elemento. "

A Leitora Real / Alan Bennett. Lisboa: Edições Asa, 2009.